Hoje tenho uma palavra nova, um gênero literário e um poeminha para apresentar. Como essas três coisas vão se relacionar, é só ver mais abaixo.
A Palavra é Varal
Um varal é uma corda estendida entre dois pontos. Normalmente, usamos o varal para deixar as roupas secarem depois de lavadas. Mas, se você viesse ao Brasil e participasse de alguma feira literária, iria encontrar um uso inusitado para o varal.
O varal também é uma vitrine nessas feiras, uma vitrine para livros de cordel.
E é o varal que dá o nome ao cordel, simplesmente por ser a corda em que todos os livretos são pendurados para serem vendidos.
E o que é o Cordel? Uma Arte e um Gênero Literário do Povo
O cordel é, basicamente, um livrinho com histórias contadas em versos. Além das histórias curiosas, o cordel atrai o leitor por suas capas.
Os livros de cordel têm capas maravilhosas. Nada de imagens feitas em computador, fotos realistas ou digitalizadas. As imagens de capa são feitas por meio de xilogravura.
A xilogravura é uma técnica de prensa antiga. Usa-se um cubo de madeira. Nele, o artesão entalha a imagem desejada. Por fim, a imagem é aplicada no papel.
Usar essa técnica já virou uma tradição entre os cordelistas. O que, além de adicionar uma arte à sua capa, esta tradição também ajudou a conferir uma identidade ao nordeste brasileiro.
Mas a capa é, como eu disse, só mais uma amostra da criatividade do cordelista.
Quando se trata das histórias de um livro de cordel, não há um padrão.
Você pode ler uma história sobre o confronto entre dois cavaleiros da idade média, ou de como um lobisomem se apaixonou por um E.T… Também pode acabar se surpreender com uma história sobre como o atual governador do estado do Rio de Janeiro venceu as eleições.
Tudo é em verso
Apesar de contar-se de tudo, o cordel possui algumas regras básicas. Tudo tem que ser contado em forma de verso.
Vamos deixar as regras de métrica poética para os artistas. Tudo que você precisa saber é que se compõe um cordel tal qual um compositor cria suas músicas.
Até porque os artistas que criam esses livretos não são, tradicionalmente, grandes estudiosos acadêmicos. Boa parte das obras de cordel vieram de pessoas com baixa ou até nenhuma escolarização.
A falta de escolaridade não impede que a arte do cordelista seja expressa. Por isso, eles ignoram as regras gramaticais e apresentam o texto da forma da linguagem falada.
E o Poeminha que prometi é esse:
Os cordelistas apresentam sua arte da forma que eles falam. Isto pode ser um desafio para os que não tiveram contato com a linguagem falada na região nordeste do país.
O seguinte poema é do cordelista Zé da Luz, “Ai se sesse”, declamado pela cantora Vitória Falcão:
Ai se sesse – Zé da Luz
Se um dia nós se gostasseSe um dia nós se queresseSe nos dois se empareasseSe juntin nós dois vivesseSe juntin nós dois morasseSe juntin nós dois durmisseSe juntin nós dois morresseSe pro céu nos assubisse
Mas porém acontecesse de São Pedro não abrisseA porta do céu e fosse te dizer qualquer toliceE se eu me arriminasseE tu com eu insistisse pra que eu me aresolvesseE a minha faca puxasseE o bucho do céu furasseTalvez que nos dois ficasseTalvez que nos dois caísseE o céu furado arriasse e as virgem todas fugisse
Conseguiu notar a diferença?
Aqui vai uma ajudinha. Essa seria a forma gramaticalmente “correta” que esse fragmento de cordel teria:
Se um dia nós nos gostássemos.Se um dia nós nos quiséssemos.Se um dia nós nos juntássemos.Se juntos vivêssemos.Se juntos morássemos.Se juntos nós dormíssemos.Se juntos nós dois morrêssemos.Se para o céu, subíssemos.Mas, porém, caso São Pedro não abrisseA porta do céu, e dissesse qualquer tolice.E se eu me irritasse.E você comigo insistisse para que eu resolvesseE a minha faca eu puxasseE a “barriga” do céu eu furasseTalvez nós dois lá ficássemos.Talvez nós dois de lá caíssemos.E o céu furado rompesse e todas as virgens de lá fugissem.
Com essa forma gramaticalmente “aceitável” certo até estaria, mas não conseguiria expor a intenção e identidade do autor que o criou, caso as gírias, modo de falar e a transcrição do sotaque não estivessem presentes.
Se fosse escrito “corretamente” seria só um poema de versos simples, não uma obra regional sobre o amor nordestino.
Uma Porção de Coisa em um Gênero
Quando a gente estuda um pouquinho de história, descobre que boa parte de tudo que sabemos não veio só de registros históricos, mas também dos artistas e do boca-a-boca da época.
Ouvia-se um boato, que logo se tornava uma notícia. Aos poucos, e confirmando a veracidade da novidade, os cantores da idade média faziam suas canções e poemas.
Esse costume de transformar os fatos em arte é de onde o cordel se originou.
O cordel surgiu na Europa, por volta do século XVII ainda inspirado nos costumes do período medieval.
Chegou a Salvador, no Brasil, junto dos portugueses. Daí então, foi se popularizando, ainda mais quando se faltava uma prensa capaz de colocar no papel tanta criatividade dos cordelistas.
E é mais ou menos daí que o cordel se originou. É imaginar que os menestréis se transformaram nos cordelistas e as suas músicas e poemas, antes apenas cantados, viraram livretos de varal.
Popular, mas não tanto…
Tantos anos fazendo parte da cultura popular do Brasil, infelizmente, não trouxe a fama que o cordel merece. A globalização, o maior acesso a educação e uma cultura centrada nas grandes capitais do mundo fizeram com que o cordel quase desaparecesse.
Só recentemente é que o cordel ganhou notoriedade, graças a outra forma de cultura popular brasileira: as novelas.
Em 2011, a Rede Globo de Televisão lançava a novela Cordel Encantado. Essa novela trazia muitas características e o charme presentes no cordel, entre eles:
-Uma história de amor e fantasia.
– Personagens do nordeste brasileiro.
– Linguagem acessível, onde não há rigidez gramatical.
Apesar do sucesso da novela, há outro responsável por trazer de volta a popularidade e apreço pelo cordel.
Foi o filme: O Auto da Compadecida. Esse sim fez o mundo conhecer um pouco da cultura nordestina e o cordel brasileiro.
O filme é uma crítica social muito bem construída com doses de humor. João Grilo é um dos personagens centrais e é também um famoso personagem de histórias de cordel.
Esse personagem é um astuto nordestino, que vive no sertão. Para conseguir sobreviver, junto do seu companheiro Chicó, João Grilo aplica pequenos golpes nos moradores da cidade de Taperoá, na Paraíba.
O filme foi baseado no livro de Ariano Suassuna que se inspirou em várias histórias de cordel para escrever a peça teatral. A série foi tão popular que rendeu filme e série…
Histórias e Mais Histórias…
E se você quer conhecer mais sobre o cordel, aqui estão algumas obras , mesmo que sem o varal para exibi-las : ).
A filha do pescador (pdf)
A história do cachorro dos mortos (pdf)
Romance do Pavão Misterioso (pdf)
Agora que já estamos no finalzinho do artigo, compartilhe aqui nos comentários se você conhece algum gênero literário assim no seu país.
Oi Eli, que conteúdo interessante!Gostei muito da poesia e da música de Gilberto Gil. Eu estarei assistindo o filme em breve também. Estudar português dessa forma é muito interessante! Muito obrigada! Giorgia
De nada, Giorgia! Fico feliz que você tenha achado o conteúdo interessante 🙂 Sugiro procurar o filme com legendas, porque pode ser um pouco difícil de entender tudo o que eles dizem, haha!