Monteiro Lobato Parte 2 – O petróleo e os personagens

Uma coisa de que não falei no último episódio sobre o Monteiro Lobato e o Sítio do Picapau Amarelo foram os personagens. Isso foi meio proposital, meio acidental. E perceba aqui meu uso da expressão “meio”. Informalmente ela significa um pouco. A gente usa mais essa expressão quando falamos com adjetivos. Por exemplo, eu hoje estou meio cansado. Eu também poderia dizer hoje estou meio que cansado. Esse “que” em “meio que” é opcional quando usamos adjetivos, mas é obrigatório com verbos.

Pois bem. Eu meio que saí do assunto.

Aquilo de que eu queria falar eram os personagens. E são personagens que todos os brasileiros vão reconhecer. Isso porque nem todos os brasileiros leram o Sítio do Picapau Amarelo, mas a grande maioria assistiu a uma das edições que passaram na televisão.

E o núcleo central da série é formado por quatro personagens – Narizinho, Pedrinho, dona Benta e Emília.

A Narizinho é a neta de dona Benta. Ela tem 8 anos E adora comer jabuticaba. E a jabuticaba é um tipo de fruta comum em certas regiões do Brasil. Ela é pequena e redondinha e eu ainda não provei jabuticaba. Mas aqui na Bahia eu sei que tem.

Bom. A Narizinho é a protagonista dos primeiros livros do Sítio do Picapau Amarelo. Essas histórias foram reunidas no livro Reinações de Narizinho. Reinação é uma palavra que eu já não vejo ser muito utilizada. Originalmente significa um tipo de brincadeira ou bagunça, mas ela também pode ter a ver com o fato de que a Narizinho se casou com o Príncipe de Águas Claras, o Príncipe Escamado. Ela virou a princesa de Águas Claras.

Sugerido: A Menina do Nariz Arrebitado (PDF)

A Narizinho tem um primo chamado Pedrinho. Enquanto a Narizinho é uma menina acostumada com a fazenda, Pedrinho é um menino da cidade. Mas isso não significa que ele não goste da fazenda ou não seja acostumado com o clima e a vida por lá. Ele é bastante corajoso e sempre participa de aventuras com sua prima e a boneca Emília.

Narizinho e Pedrinho são netos de dona Benta. Dona Benta faz o papel da Vovó que conta histórias e cuida dos netos, um papel bem típico aqui no Brasil. Dona Benta se tornou tão popular que aqui no Brasil virou até marca de farinha de trigo e também rendeu uma série de livros de receitas (link afiliado). E quando uma coisa rende outra, e no nosso caso a personagem de dona Benta rendeu livros de receita, isso significa dizer que a primeira coisa serviu para produzir a segunda coisa. A gente usa muito essa palavra no sentido de produção. Por exemplo, temos uma receita de bolo. Nesta receita precisamos de um ingrediente e outro ingrediente e outro ingrediente. Combinados, esses ingredientes rendem um bolo para 4 pessoas. Inclusive, na maioria das receitas que você ler online ou em livros impressos consta a informação do rendimento da receita. Render tem outros significados.

Emília é uma boneca criada por outra personagem importante, a tia Nastácia. A Emília não falava originalmente, mas um doutor especial do sítio lhe receitou uma pílula falante e Emília desembestou a falar e nunca mais parou. E desembestar a fazer alguma coisa significa começar a fazer essa coisa com muito ímpeto, com muita intensidade. Fulano desembestou a falar sem parar. E desembestar tem como significado original começar a correr com muito ímpeto.

A Emília é uma personagem importante também porque são dela as falas mais interessante, na minha opinião. Ela tem ideias engraçadas e logo no primeiro livro ela e o Visconde de Sabugosa arquitetam um plano para fazer os fazendeiros das fazendas vizinhas venderem suas propriedades para dona Benta a um preço acessível. O mais legal é que nessa cena ela e o Visconde estão bebendo uma cervejinha. Eu ficava imaginando uma boneca de pano bebendo cerveja na companhia de um sabugo de milho. era uma cena hilária.

Claro que no sítio tem muito mais personagens. Tem Quindim, um rinoceronte que fala, tem o Burro Falante, a tia Nastácia, o tio Barnabé, a Cuca e muitos outros.

Esses três últimos ganharam bastante notoriedade. Tia Nastácia era a quituteira negra que representava a sabedoria popular e o tio barnabé é um homem da roça, também negro, que sabe de tudo sobre o folclore e as coisas da floresta.

E preciso fazer algumas notas.

Mencionei que ambos são negros por causa de uma polêmica aqui no Brasil.

A descrição que Monteiro Lobato fazia de tia Nastácia – em especial do vocabulário que às vezes Emília utilizava para se referir a ela – era bastante racista. Esse vocabulário refletia o pensamento e os costumes da época, de um Brasil que até uns anos antes tinha a escravidão instituída por lei e direito. E por conta do vocabulário que o autor utilizou, alguns profissionais da educação e do mercado editorial começaram um debate – devemos manter as palavras racistas ou devemos removê-las? Devemos cancelar o autor ou estudá-lo como documento histórico?

A solução encontrada não foi única e continuam gerando polêmicas, até com o cancelamento de Monteiro Lobato na literatura brasileira. algumas pessoas acrescentaram notas de rodapé explicativas. O rodapé é a parte de baixo da página de um livro onde normalmente os autores ou os editores incluem notas de explicação. E nesse caso o que as notas de rodapé diziam era que naquele tempo o Brasil era diferente e que o racismo era maior e tal e tal e tal, mas cá entre nós o Brasil continua racista sim – eu mesmo fui educado por assim dizer sabendo e usando termos racistas porque era assim que os adultos faziam e assim que as crianças se comportavam. Claro, hoje questiono esse uso de palavras e termos racistas, mas quando eu era adolescente eu usava todos eles e ninguém nunca me disse que era errado porque todo mundo achava que era certo. Então, essas notas de rodapé não servem muito porque elas dizem que o Brasil mudou daquele tempo para cá, mas na vida de muitas pessoas não mudou nada. Se você der uma olhada rápida no que falam nossas autoridades, vai ver que a maioria não só são coniventes com o racismo como também são racistas. A diferença de antes para agora é que pelo menos a gente agora questiona isso.

Bom, colocando essas polêmicas à parte, quero voltar a um personagem importante que nos leva a outro ponto.

O Visconde de Sabugosa era um sabugo de milho muito sábio, muito inteligente e curioso.

E se você ainda não souber o que é um sabugo… sabe o milho? Quando você come milho aquela parte dura que a gente normalmente não come é o sabugo. A gente normalmente joga o sabugo fora. Mas não Visconde. O Visconde de Sabugosa era um sabugo vivo que falava.

Num dos livros do Sítio do Picapau Amarelo, um livro chamado o poço do Visconde, o Visconde encontra petróleo.

E começou assim:

Sugerido: O Poço do Visconde (PDF)

O Visconde ficou curioso para saber mais um pouco sobre geologia. Essa curiosidade veio depois de muito conversarem ele e as outras pessoas do sítio sobre o petróleo. Bom, se o petróleo vinha da terra, não do planeta terra, mas sim do solo onde a gente pisa, então fazia sentido estudar geologia. E de tanto estudar geologia, o Visconde decidiu ensinar o que aprendeu às crianças.

Pedrinho perdeu a paciência. Ele ouvia falar de petróleo isso, petróleo aquilo… o jornal vivia falando de petróleo, mas nada do petróleo aparecer. Então Pedrinho diz, já um pouco indignado, “Estou vendo que se nós aqui no sítio não resolvermos o problema, o Brasil ficará toda a vida sem petróleo.”

E as crianças do sítio decidiram resolver o problema de petróleo do Brasil. Eles arquitetaram um plano de como fariam para perfurar, escavar um túnel no chão. Esse túnel a gente chama de poço. E normalmente o poço de petróleo é muito profundo para escavar com qualquer ferramenta. São necessárias máquinas enormes e toda uma estrutura de apoio. Tudo isso custava muito dinheiro. Mas como no sítio tudo é mágico, as crianças deram um jeito, isto é, encontraram uma solução. Eles usaram o faz-de-conta, que é outra palavra para a imaginação infantil, e fizeram aparecer todo o maquinário necessário para escavar o poço profundo.

E aqui a história se mistura com a ficção.

Ali pela década de 1930 Monteiro Lobato estava convencido de que no Brasil havia petróleo. Outros países da América Latina – e aqui nós damos destaque especial a Venezuela – já produzia um petróleo e o Brasil tinha as mesmas características geológicas dos outros países. Então, por que o Brasil ainda não tinha procurado o petróleo?

E agora a história fica um pouco complicada, mas vou tentar simplificar.

Monteiro Lobato tinha passado alguns anos trabalhando nos Estados Unidos. Lá ele percebeu que o país crescia muito por sua riqueza petrolífera. E vendo que outros países também conseguiam extrair petróleo e se desenvolver Monteiro Lobato tentou fazer que o mesmo acontecesse no Brasil.

De volta ao Brasil ele começou uma campanha longa para que o governo resolvesse procurar petróleo no país. E em 1934 o governo brasileiro criou o Departamento Nacional de Produção Mineral, que era encarregado da… produção mineral, que incluía a perfuração do solo brasileiro em busca de petróleo.

O governo tratou de contratar profissionais estrangeiros – Victor Oppenheim – para fazer os estudos e determinar se havia ou não petróleo. Victor Oppenheim era ligado à Standard Oil, que era o maior truste de produção e extração de petróleo dos Estados Unidos, e se tinha uma coisa que, na visão  de Lobato (no livro O Poço do Visconde isso fica claríssimo) a empresa americana não queria era um brasil autossuficiente na produção de petróleo. Primeiro, talvez se acreditasse que o Brasil pudesse estatizar o petróleo – ou seja, fazer o Estado Brasileiro ser o dono único do petróleo. A gente já viu esse filme antes. E segundo, o Brasil importava muito petróleo, e se ele se tornasse autossuficiente já não teria mais motivos para comprar o petróleo.

E esse esquema ficou tão na cara o que Victor Oppenheim visitou uma localidade que fica aqui em Salvador no bairro de Lobato que não tem nada a ver com o autor Monteiro Lobato e disse que lá a possibilidade era negativa e basicamente que não vale a pena perfurar local. Mais tarde houve perfuração do local e descobriram petróleo!

No final das contas, uma lei chamada código de Minas determinou que o petróleo só poderia ser explorado por brasileiros ou por empresas brasileiras constituídas no país e em 1953 a exploração de petróleo passou a ser monopólio da União, que é como chamamos a organização federal do Brasil, o Estado Brasileiro. Esse monopólio vigorou, ou seja, foi válido até 1997.

E 1953 marca também o surgimento da Petrobrás, a empresa Petróleo Brasileiro, sendo que sua semente tinha sido plantada em 1946 com a campanha popular “o petróleo é nosso”.

Bom, eu resumi, simplifiquei e editei muita coisa aqui. A história é bem mais complexa. o Monteiro Lobato teve um papel importantíssimo para a exploração do petróleo por parte de empresas brasileiras, mas houve muita discussão e debates políticos entre nacionalistas que queriam o monopólio do estado brasileiro e os entreguistas que queriam entregar a empresas estrangeiras a exploração do petróleo em solo brasileiro. Monteiro Lobato chegou até mesmo a escrever um livro sobre o escândalo do petróleo e na tradução – na verdade, na revisão – de um livro chamado a luta pelo petróleo, de Essad Bey.

E ele fez tudo isso enquanto eu escrevia também literatura.

A importância de Monteiro Lobato é enorme para o Brasil. Discutir seus feitos é essencial para entender mais o Brasil moderno.