Carolina Maria, a poetisa negra.
Era assim que se apresentava uma mulher de rosto cansado nas redações dos jornais de São Paulo. Mas apesar de seu rosto parecer cansado, seus olhos davam outra impressão. Seu olhar era cheio de esperança e sabedoria que uma vida de labuta lhe deu. A labuta é o trabalho intenso, o trabalho duro e penoso, em geral muito cansativo fisicamente. E como você vai ficar sabendo, Carolina labutou como muitos brasileiros ainda labutam.
Imagine você ter a chance de ir para a escola, mas nunca poder concluir o ensino fundamental. O ensino fundamental no Brasil corresponde aos 9 primeiros anos da educação básica. Os alunos começam o ensino fundamental com 6 anos e terminam o ensino fundamental normalmente com 14 anos, mas essa idade pode variar. Os 9 anos do ensino fundamental são chamados de primeiro ano, segundo ano, terceiro ano etc. Antigamente a gente chamava primeira série, segunda série, mas recentemente a nomenclatura mudou. Nos Estados Unidos, as pessoas fazem o ensino básico, depois o segundo ciclo do ensino básico, que se chama middle school, e depois têm o ensino médio. Essa é uma distinção importante quando você conversar com brasileiros, porque o sistema de ensino do Brasil quase nunca corresponde 100% ao sistema de outros países.
Então. Carolina de Jesus, cuja música você ouviu um trecho, um pedaço, na introdução desse podcast, a Carolina de Jesus tinha completado apenas o segundo ano do ensino fundamental quando precisou interromper os estudos. Mas já naquela época a sementinha do gosto pela leitura já tinha sido plantada.
Quando ela interrompeu os estudos, ainda era criança. E por uma série de infortúnios, ou seja, por uma série de episódios infelizes e desgraças, ela nunca pôde concluir a educação básica, ficando apenas com aproximadamente um ano e meio de estudos.
Ela nasceu numa comunidade rural da cidade de sacramento no estado de Minas Gerais. O ano era 1914 e fazia apenas 26 anos desde que a Abolição da Escravatura tinha acontecido no Brasil. Ou seja, havia poucos anos que os negros tinham ganhado a dignidade mínima de não serem escravos, mas como tinha se passado pouco tempo, eles ainda sofriam (e sofrem, para falar a verdade) muito preconceito.
Sendo negra, Carolina provavelmente sofria muito preconceito e não tinha muitas chances naquela época porque a Abolição da Escravatura no Brasil aconteceu sem qualquer planejamento. O governo simplesmente disse que aquelas pessoas que não eram livres agora eram livres e elas que se virassem.
Quando a gente diz essa frase em português, “fulano que se vire”, a gente quer dizer que a gente não se importa com o que aconteça ao fulano. O fulano tem a responsabilidade de sobreviver, de resolver os próprios problemas, mesmo que não tenha condições.
Você pode pedir ao seu colega de trabalho: “por favor, me ajude a escrever este documento, pois eu não entendo.” E o seu colega de trabalho pode responder: “você que se vire.” Esse documento não é minha responsabilidade. Então, quando a atitude do governo foi de os escravos que se virem, isto significa que não houve nenhum tipo de reparação, nenhum tipo de proteção, nenhum tipo de plano para que todos pudessem ter condições dignas de vida. Então Carolina já nascia com essa desvantagem, porque sua família não teve condições e ela tampouco as tinha.
E Carolina, sim, teve muita dificuldade na vida. Quando sua mãe faleceu em 1937, Carolina precisou migrar para a metrópole de São Paulo. Sacramento era uma pequena cidade que não oferecia muitas condições de sobrevivência. E Carolina mal tinha condições de viver em Sacramento. Além disso, por conta de alguns episódios injustos dos quais não vamos ter tempo de falar hoje, ela não queria mais voltar a Sacramento.
Na cidade, ela conseguiu emprego na casa de um famoso cardiologista. Na casa dele, ela tinha a chance de ler livros da biblioteca do patrão nos dias de folga.
Depois de ficar grávida, Carolina já não podia trabalhar em casa de família. É uma coisa muito comum aqui no Brasil. Se uma mulher fica grávida, seu emprego fica ameaçado, porque para o patrão, ou seja, para o dono da empresa, é um gasto a mais, é um risco, por assim dizer; eu acho uma injustiça, mas isso ainda acontece muito.
Então Carolina foi para as ruas, trabalhar como catadora de papel. E uma pessoa que cata papel é uma pessoa que coleta papel do lixo, para vender para a reciclagem e conseguir dinheiro para sobreviver. Aqui no Brasil ainda existem muitos catadores. E nem sempre os catadores catam apenas papel. Eles podem catar latinha de refrigerante, garrafas e vários outros materiais que podem ser reciclados.
Mas, de acordo com o relato, e um relato é uma história verdadeira contada por alguém… então, de acordo com o relato da filha de Carolina, um político famoso chegou à cidade de São Paulo e, nessa chegada, ele decide recolher todos os pobres das ruas. A gente pensa – ah, mas então ele vai ajudar, já que ele vai tirar todos os pobres das ruas. Mas não. O que aconteceu foi que esse político colocou todos os pobres num caminhão e os “despejou” no lugar que se tornaria a Favela do Canindé, onde Carolina morou e do qual vamos falar daqui a pouco.
E uma nota sobre essa palavra, despejar.
Sabe quando você vai preparar arroz? Você pega o arroz de um pacote e despeja o conteúdo na panela. Agora imagine que a panela é uma favela e o arroz é o pobre. O que a prefeitura de São Paulo fez foi despejar aquelas pessoas na favela. E hoje em dia, usamos essa palavra também quando precisamos deixar nossa casa ou apartamento porque não podemos pagar e o dono do apartamento pede que a gente saia. Eu nunca fui despejado, mas conheço quem foi, e sei que isso não é nada legal.
Mas voltando à Carolina.
Carolina escrevia muito, além de catar papel e trabalhar muito. Ela não teve a educação formal a que muitos brasileiros hoje têm acesso. Mas mesmo assim não deixou que isso a impedisse de escrever.
Ela escrevia poemas, histórias, e publicava de vez em quando nos jornais da cidade de São Paulo.
E enquanto trabalhava como catadora, Carolina também escrevia diários e mais diários descrevendo seu cotidiano. Um dia, quando recebeu a visita de um jornalista que escrevia uma reportagem sobre a Favela do Canindé, onde Carolina morava, Carolina resolveu mostrar os seus diários. O jornalista ficou impressionado com a história daquela mulher e em 1960 os diários editados de Carolina de Jesus foram publicados sob o título de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”.
O livro foi uma febre – ficou popular imediatamente. A classe literária e o mercado editorial adoraram a história e ela foi traduzida para 14 idiomas. Em inglês, a história dela foi publicada sob o título “Child of the Dark”.
Carolina escrevia num estilo seco e direto e descrevia as histórias e as pessoas sem firula. E a firula é quando as pessoas usam palavras ou frases desnecessárias para complicar ou fazer parecer mais sofisticado o que não é. Muitas pessoas escrevem firulas para parecerem inteligentes, por exemplo.
Eu vou ler para você só o primeiro parágrafo da primeira página, porque ele dá o tom de toda a história. E quando uma tal coisa dá o tom de outra, isto significa que essa tal coisa serve como modelo ou parâmetro da outra.
E vamos ao primeiro parágrafo:
15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
É um parágrafo muito simples, mas, para quem vive na pobreza no Brasil ou conhece a pobreza de perto, é um parágrafo muito forte.
Era o aniversário da filha dela e ela queria comprar um sapato. Mas a comida estava cara. A Carolina escreveu que naquela época as pessoas eram escravas do custo de vida. Bom, isso não mudou nada e eu já falo um pouco mais como o custo de vida influencia as favelas aqui no Brasil. Mas continuando no parágrafo da Carolina, ela disse que não tinha dinheiro, então não era possível comprar o presente, mas ela encontrou uma solução: ela encontrou um par de sapatos no lixo, lavou e consertou, “reparou”, para sua filha poder usar.
Para mim este é um parágrafo muito forte. Eu tive a sorte de nascer numa época mais feliz para a minha família. Então não tive de passar fome nem sofrer esse tipo de situação. Mas eu conhecia muitos amigos na minha escola que tinham uma realidade parecida.
Bom, se você quiser ler esse livro em português e puder entender o que eu estou dizendo aqui, não vai ter muitos problemas. E eu ainda recomendo utilizar a tradução em inglês como referência para aqueles momentos mais difíceis do livro. O livro conta a realidade nua e crua, e “nua e crua” significa com honestidade total, com franqueza total, sem nenhum tipo de enfeite ou disfarce. A realidade nua e crua, então, é aquela que pode ser desagradável para algumas pessoas.
Carolina de Jesus também sonhava em ser atriz e cantora. Ela ainda compôs algumas músicas muito divertidas e várias muito tristes como essas daqui.
E uma coisa de que falei hoje foi da favela.
E se você está estudando português há algum tempo, favela com certeza é uma palavra familiar para você. Mas de onde foi que ela veio? E como surgiram as primeiras favelas?
A história é um pouco longa e complicada, mas vou simplificá-la para você.
Houve uma guerra interna no Brasil chamada de “Guerra de Canudos”. Ela aconteceu no atual estado da Bahia. Havia uma cidadela, que é um tipo de fortaleza, uma construção, que tinha sido construída em vários morros, que são como colinas, mas mais baixinhos, e um desses morros era chamado de Morro da Favela. Esse nome, favela, vinha de uma plantinha chamada “favela” ou “faveleiro”, que era muito comum naquela região.
Os soldados venceram a guerra e voltaram ao Rio de Janeiro em 1897 para receber o soldo, que é outra palavra menos comum para salário. Mas eles levaram um calote do governo. Levar um calote de alguém significa não receber o dinheiro devido, o dinheiro que é seu por direito. As pessoas dão calote em outras quando não pagam o que devem pagar. Quem não recebeu dinheiro levou o calote. E uma pessoa que dá calote é caloteira. Então, nesse caso que estou narrando o governo foi caloteiro.
Os soldados ficaram muito irritados e invadiram uma chácara, uma casa grande no campo, no Morro da Providência. Como os soldados se organizaram no morro da mesma forma que tinham se organizado em Canudos, eles deram o nome de “Favela” ao morro, porque se lembravam das experiências no Morro da Favela.
Mas as favelas cresceram mesmo quando ocorreu a Abolição da Escravatura. Antes escravas, agora milhares de pessoas ocupavam as ruas do Rio de Janeiro sem trabalho nem condições de vida. Elas acabaram indo morar nos morros. Eram os locais “ideais”, e aqui eu digo ideais entre aspas, para que as famílias pobres fosse morar. O governo mesmo se deu conta de que era bom ter a favela como fondue de mão de obra barata para trabalhar. Mas essa é uma história mais longa.
E a pergunta é: por que as favelas nunca desapareceram? Bom, em parte é que nunca foi interesse do governo resolver o problema da habitação definitivamente. Então, muitas pessoas que não têm condições de residir, isto é, de morar nas outras áreas das cidades – por causa do custo de vida impeditivo, da falta de acesso à educação – essas pessoas acabam indo morar nesses lugares. A condição de vida é precária na maior parte do tempo. A existência da favela é basicamente um aviso de que a desigualdade social existe no Brasil e é gigantesca.
Infelizmente, eu não tenho como explicar para você aqui tudo o que sei sobre favela. E o que sei não é muito. Por isso, nas notas desse podcasts vou recomendar algumas fontes onde você pode ficar sabendo muito mais.
Barraco
E quando a gente fala de favela uma palavra que talvez você escute muito é barraco.
A palavra barraco no Brasil tem vários significados.
Um deles é o mesmo que barraca, que é um tipo de construção provisória feita com madeira ou lona; a lona é um tecido bem grosso, como o dos circos, por exemplo.
Eu disse que o barraco é uma construção provisória, mas na vida de muitos brasileiros acaba sendo a moradia, ou seja, acaba sendo o lugar onde eles moram, residem.
Barraco também é usado na expressão informal armar barraco com alguém. E arrumar barraco com alguma pessoa significa brigar com essa pessoa. E quando você arma barraco, mas não tem nenhuma pessoa, isto significa causar discussão, fazer um escândalo. Geralmente quando uma pessoa “arma um barraco” é uma barulheira completa. E uma pessoa que goste de armar barraco, seja sozinha ou com alguém, é chamada de barraqueira.
No passado, eu tinha uma vizinha barraqueira. Eu mesmo sou um pouco barraqueiro.
E talvez você pense que um barraco é a mesma coisa que uma tenda. É quase a mesma coisa, no sentido de construção provisória, mas uma tenda vai ser sempre feita de algum tecido grosso como a lona, e normalmente a gente arma a tenda ao ar livre para fazer coisas como acampamento, por exemplo.
E estas foram os tópicos de hoje. Foi um episódio diferente dos demais. Se você tiver perguntas, pode me enviar diretamente no site.
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