Chiquinha Gonzaga, the Woman who Changed Music in Brazil
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Era uma noite de céu limpo. A primeira-dama, e primeira-dama é a esposa do presidente em exercício, como eu ia dizendo, a primeira-dama teve a ideia de celebrar o fim do mandato de seu marido, o então presidente Hermes da Fonseca. Foi uma recepção presidencial diante do corpo diplomático e da alta sociedade carioca. Seria um evento comum, se não fosse pela escolha musical da primeira-dama.
Ela escolheu executar uma música chamada O Gaúcho, que foi composta pela musicista Chiquinha Gonzaga. O Gaúcho é uma peça musical bem dançante, que dá para dançar, e é uma peça também muito bonita. Inclusive, essa é a música O Gaúcho, também chamada de Corta-Jaca hoje em dia.
Na hora foi um sucesso. Todo mundo bateu palmas, todo mundo agradeceu, menos o Rui. E o Rui de quem eu estou falando é o Rui Barbosa, uma personalidade muito importante na história brasileira. Naquela época ele era senador. Ele também tinha pretensões de se tornar presidente. E aqui ter pretensões significa ter intenção ou plano de fazer alguma coisa, de realizar alguma coisa. Não confunda a palavra “pretensão” com a palavra inglesa que é muito parecida. Elas não têm nada a ver. E como eu ia dizendo, Rui Barbosa não ficou muito feliz com a escolha da música para tocar. Não só porque ela tinha sido composta por Chiquinha Gonzaga, de quem vamos falar hoje, mas também porque na opinião dele o corta-jaca era, e agora eu estou citando, ou seja, eu estou dando as palavras exatamente como ele as disse, e a gente pode dizer que o que eu estou fazendo é uma citação. Como eu estava dizendo, o Rui Barbosa fez um discurso em que disse que o corta-jaca “era a mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba.”
E aqui a gente tem um bocado de palavras para analisar antes de continuar.
E o batuque é a batida da música. [Barulho de batuque]. Eu lembro que na escola as crianças gostavam de batucar enquanto os professores tentavam dar aula. Não era uma coisa muito boa, mas acontecia.
E o corta-jaca tinha mesmo batuque? Tinha sim.
O cateretê é um tipo de dança em que batuca com os pés. E o samba, bem, se você está estudando português há tanto tempo e está escutando este episódio do nosso podcast, muito provavelmente você sabe o que é o samba. Se não souber, busca no Google.
E repare que Rui Barbosa chamou o corta-jaca de dança selvagem, chula. E se você falar espanhol, provavelmente sabe o que significa chulo, mas se não falar, chulo é uma coisa grosseira, rude, que é associada a certo tipo de gente.
Bom, parece que o Rui realmente não gostava do corta-jaca nem da Chiquinha Gonzaga.
E quem era Chiquinha Gonzaga, afinal? E por que o Rui Barbosa e outra parte da sociedade brasileira daquela época não gostavam dela?
Bom, a primeira coisa que você precisa saber é que Chiquinha Gonzaga nasceu na época do Brasil Império. Ela nasceu no ano de 1847. Naquele tempo, a escravidão era legal na sociedade. Além do quê, tudo que estivesse associado de uma forma ou outra aos escravos era considerado inferior, de menor qualidade, ou reprovável.
E Chiquinha Gonzaga era filha de um militar com uma escrava alforriada. No episódio anterior, quando falei um pouco da Escrava Isaura, expliquei que alforria era um tipo de documento que garantia a liberdade a um escravo. Hoje em dia, os brasileiros ainda utilizam a palavra alforria quando fazem piada sobre o próprio trabalho. Mas era este o único motivo para que Chiquinha Gonzaga ganhasse a antipatia da alta sociedade?
Claro que não. E a gente já chega no segundo ponto que escandalizou a sociedade.
Como era filha de militar, e a família dela tinha pretensões aristocráticas, ou seja, eles pretendiam ou tinham a intenção de fazer parte da aristocracia brasileira, Chiquinha Gonzaga recebeu boa educação. Mas naquele tempo, a boa educação para uma mulher significava a boa educação de uma dona de casa.
Mas ela gostava muito de música. Estudou com um importante maestro da época e desde pequena frequentava rodas de músicas de ritmos oriundos da África. E oriundo, ou ser oriundo de algum lugar significa ser originário de algum lugar, vir de algum lugar. A gente pode dizer que os produtos eletrônicos oriundos da Coreia do Sul têm alta qualidade. E a gente pode também dizer que tal ou tal palavra é oriunda do latim.
E a roda de música era coisa comum entre os sambistas – e ainda o é. É um evento sempre muito animado. Eu sugiro que você olhe os recursos do nosso episódio de hoje, na descrição do episódio.
Mas como eu ia dizendo, Chiquinha Gonzaga gostava de música, mas não deu muito certo a sua carreira musical inicialmente. Ela foi obrigada a se casar aos 16 anos. Seu marido, que era oficial da marinha Mercante, proibia que ela se envolvesse com a música. Não pegava bem uma mulher tocando piano por aí. E “não pegar bem” significa não ser aceitável pela boa moral ou pelos bons costumes. Em geral, a gente diz alguma coisa não pega bem. Por exemplo, não pega bem ficar andando por aí sem roupas. Além disso, é um crime, mas antes de mais nada não pega nada bem.
Chiquinha Gonzaga aceitou a proibição por algum tempo. Afinal, teve três filhos com o marido, gostava muito deles, mas gostava ainda mais da sua independência e da música. Quando foi um belo dia, ela olha bem para o marido e diz: estou fora. Talvez ela não tenha dito isto assim, mas é a impressão que deu. Quando alguém diz “estou fora,” essa pessoa quer dizer que não vai mais participar de alguma coisa, que não aceita mais alguma coisa. E quando Chiquinha Gonzaga disse estou fora, ela saiu do casamento e se transformou numa mulher separada.
Imagine você. No Brasil de hoje em dia, especialmente em cidades pequenas, uma mulher separada ganha má fama, má reputação. Talvez nas cidades maiores isso não aconteça tanto. Mas numa cidade menor como a em que eu nasci, mulheres que tivessem se separado ganhavam nomes horríveis, como desquitada. Pelo menos, eu nunca ouvi falar de um homem desquitado, mas de mulheres desquitadas já ouvi falar.
Então Chiquinha Gonzaga se separou do marido. E o marido a proibiu de criar dois dos filhos que ela teve com ele. Agora, ela estava criando só um filho, que era o mais velho, e precisava trabalhar para sobreviver. Ela dava aula de música, também ensinava outras coisas como português e francês, e até veio a se casar outra vez. Mas o segundo marido botava chifre nela. E botar chifre é uma expressão informal que significa “trair o esposo ou a esposa ou o namorado ou a namorada”. A gente diz que fulano botou chifre em sicrano, e isso significa que fulano teve um caso extraconjugal. Bom, o marido de Chiquinha botava chifre nela, ela não aceitava a situação e mais uma vez se separou.
Agora além de filha de escrava ela era uma mulher desquitada duas vezes.
Mas era por isso que as pessoas da alta sociedade a condenavam?
Calma lá, tem mais coisa.
Talvez por ser filha de escrava ou simplesmente por perceber o disparate, o absurdo que era a escravidão, Chiquinha Gonzaga também se envolveu com a política. Ela trabalhava em prol da abolição da escravidão e ela tampouco simpatizava com a monarquia. E trabalhar em prol de alguma coisa significa trabalhar para que algo aconteça, trabalhar em favor de alguma coisa. Você pode trabalhar em prol de uma causa beneficente, em prol dos direitos dos trabalhadores, em prol da preservação da Amazônia etc. E Chiquinha Gonzaga trabalhava em prol da abolição da escravidão. E eu usei uma palavra ali de propósito. Eu disse que ela tampouco simpatizava com a monarquia. E antes de continuar, vou fazer um pequeno parêntese. Muitos dos meus alunos, especialmente hispanofalantes, gostam de utilizar a palavra tampouco. Mas normalmente a reação que eles recebem dos brasileiros é de que essa palavra não existe. Eu vou dizer para você: sim, essa palavra existe e é uma ótima palavra. O que acontece é que normalmente essa palavra só aparece em textos, não muito na conversação do dia a dia. Mas um brasileiro não reconhecer essa palavra imediatamente não significa que você esteja falando errado. Significa que esse brasileiro não lê. E aqui nós temos muitos brasileiros que não leem.
Ok, agora temos uma mulher, musicista, filha de escrava, independente, politicamente militante e mãe solteira. Será que era só por isso que a alta sociedade do Rio de Janeiro não gostava dela?
Talvez. O fato é que ela era querida por um grande público. Os críticos profissionais, a alta classe política como a que Rui Barbosa integrava, aquele povo que não tinha mesmo contato com a população brasileira não gostava muito de Chiquinha ou de suas composições. Mas o público que consumia sua música, o público que participava das rodas de samba, os chorões, que eram musicistas que tocavam choro, um estilo musical bem brasileiro, e o público de outros países – todos esses adoravam a Chiquinha Gonzaga.
E ainda podemos dizer que o gosto popular pelo piano brasileiro surgiu por causa dela. Foi ela também que trouxe o violão para o centro musical. Ali pelo final do século XIX, o violão era considerado coisa da malandragem, porque os sambistas da periferia utilizavam os violões, e os sambistas eram em sua maioria negros.
Agora Chiquinha Gonzaga caiu nas graças da geral com a composição Ô Abre Alas, que é uma marchinha de Carnaval até hoje conhecida por todo mundo que conhece o Carnaval no Brasil.
Esse ritmo que você está ouvindo é chamado de marcha-rancho, e quando hoje em dia se fala nas marchinhas das antigas, especialmente quando discutimos o Carnaval, estamos falando desse ritmo.
E que fim teve Chiquinha Gonzaga?
Bom, ainda tem mais um escândalo de que eu não falei ainda. Chiquinha Gonzaga conheceu uma estudante de música de 16 anos e se apaixonou por ele. Ele se chamava João Batista Fernandes Lage e era português. Ele tinha 16 anos e ela tinha 52. Como era uma diferença gritante de idade, ou seja, uma diferencia óbvia demais para ser ignorada, Chiquinha Gonzaga resolveu adotar João Batista como filho, para evitar que as más línguas, ou seja, os fofoqueiros e as fofocas, destruíssem sua carreira. Os filhos de Chiquinha Gonzaga chiaram um pouco, quer dizer, eles reclamaram um pouco, eles apresentaram um pouco de resistência, mas acabaram aceitando o relacionamento da mãe. Eles viveram juntos até o fim da vida de Chiquinha Gonzaga em 1935.
E talvez seja coincidência ou não, mas Chiquinha Gonzaga morreu pouco antes do carnaval.
Depois de sua morte, ela talvez tenha ficado ainda mais famosa. Se você tiver interesse, tem livros e mais livros escritos sobre a vida dela, biografias, análises críticas… tem muita coisa. Teve também uma minissérie televisiva sobre a vida dela. Pessoalmente, eu não gosto muito das atrizes que interpretaram o papel de Chiquinha Gonzaga, que foram Regina Duarte e Gabriela Duarte. Gabriela Duarte foi Chiquinha Gonzaga quando jovem e ela é uma boa atriz, mas a Regina Duarte, que interpretou Chiquinha Gonzaga mais velha, me dá a impressão de ser sempre a Regina Duarte interpretando alguém. Mas aí é uma picuinha minha, uma hostilidade minha, e não tem nada a ver com a qualidade da obra.
No próximo episódio em que vou falar mais sobre as novelas brasileiras, torno a falar sobre Regina Duarte e sua importância na televisão brasileira.
Por enquanto, tenho apenas um recado para você.