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Monteiro Lobato, o Homem que Revolucionou o Mercado Editorial (e muito mais)

 

Tem alguns cantores no Brasil que ficam conhecidos por uma música apenas. Geralmente eles emplacam uma música, e emplacar algo significa fazer sucesso com alguma coisa… é uma palavra bem brasileira. Bem, eles emplacam uma música numa novela, tocam essa mesma música em todos os shows que fazem e anos mais tarde só são lembrados por causa da mesma música.

Nós chamamos esses artistas de cantores de uma música só.

Mas não é só na área da música que existe esse fenômeno. Artistas de outras áreas acabam ficando conhecidos por apenas um grande trabalho ou uma grande obra. A gente tem muita sorte de esse não ser mais o caso do escritor brasileiro Monteiro Lobato. Como você vai ver, o Monteiro Lobato foi um cara bem polêmico e ainda hoje ele suscita, isto é, faz aparecer um sentimento de raiva e admiração.

Mas se eu começasse a falar deste autor pelo ano de nascimento e tal e tal e tal, ia ficar muito chato. Então, deixa eu te contar logo a coisa que ele fez e que provavelmente é a primeira que você vai conhecer.

Na cozinha da casa do Sítio do Picapau Amarelo, Dona Benta conversa com Tia Nastácia. Dona Benta está dando as ordens sobre o que preparar para o jantar e Tia Nastácia, que é a empregada da casa, escuta com atenção. Logo em seguida, a neta da Dona Benta entra na cozinha correndo. A neta se chama Lúcia, mas todo mundo a conhece pelo apelido de Narizinho, por causa de seu nariz arrebitado, ou seja, que aponta para cima. Narizinho pergunta onde a Emília está. Afinal, aquela boneca não pode ter ido muito longe.

E se você conhecer a palavra boneca, que é um tipo de brinquedo que representa em geral uma mulher, provavelmente vai saber que uma boneca não fica andando por aí.

Mas não a boneca da Narizinho. A Emília pode falar, andar e fazer muitas coisas.

E no Sítio do Picapau Amarelo Emília não é a única coisa falante.

No sítio vivem muitas criaturas mágicas e outras vão chegando conforme o tempo passa. Lá, os animais falam, as criaturas mágicas de histórias fantásticas aparecem todo o tempo, e no geral todo mundo se diverte de montão. E fazer alguma coisa de montão significa fazer uma coisa com grande quantidade ou intensidade. É uma expressão mais infantil, não são muitos os adultos que utilizam essa frase, mas ela ainda é utilizada.

Bom, voltando ao Sítio do Picapau Amarelo…

Praticamente todas as crianças brasileiras nascidas nos últimos 70 anos e que passaram pelo sistema escolar do Brasil conhecem essa história.

Monteiro Lobato escreveu uma série de 23 livros de literatura fantástica, que é aquela literatura que lida com criaturas mágicas e coisas do tipo. Ele começou a escrever os livros do Sítio do Picapau Amarelo na década de 1920, um pouco antes da Grande Depressão dos Estados Unidos acontecer. Antes daquela época, existia muito pouca coisa de literatura infantil no Brasil. E também era um problema conseguir livros assim. Os livros daquela época não eram editados no Brasil. Eles eram editados ou em Portugal ou na França e depois importados, e isso encarecia muito o custo do livro. E encarecer significa fazer ficar caro, fazer custar muito mais. Então os custos de importação encareciam os livros e ficava muito difícil fazer que as crianças lessem ou começassem a gostar de ler.

Mas pera lá. Eu estou colocando o carro na frente dos bois – e colocar o carro na frente dos bois significa inverter a ordem de uma coisa que se deve fazer. Eu estou começando por um ponto que só precisa ser apresentado depois.

Então, vou voltar um pouco no tempo.

O ano era 1882.

O Brasil ainda era um Império, ou seja, a República brasileira ainda não existia. Ainda havia escravos. A maior parte da vida no Império brasileiro acontecia ou no Rio de Janeiro ou em São Paulo – e parte em Minas Gerais também, mas isso não nos interessa hoje.

E Monteiro Lobato nasceu no ano de 1882 em Taubaté, na província de São Paulo. Ele teve boa educação, se formou em direito e trabalhou no serviço público. Mas esse não era o seu desejo. O que ele queria mesmo era estudar Belas Artes e ser artista – ele sempre teve jeito para a escrita e para o desenho. E quando alguém tem jeito para alguma coisa isso significa que essa pessoa tem um talento natural para essa coisa. Então o Monteiro Lobato tinha jeito para a escrita isso significa dizer que ele tinha talento para a escrita.

Só que ele teve um probleminha. Ele precisava assumir os negócios da família. Então acabou estudando direito.

Monteiro Lobato também foi muito empreendedor. Abriu uma série de empresas e contribuiu para vários jornais do Brasil. Quando completou 29 anos, Monteiro Lobato recebeu a notícia de que seu avô tinha falecido. Então Monteiro Lobato herdou os bens do avô.

E em português essa palavra “bens” significa tudo aquilo que uma pessoa possui, as posses e propriedades dessa pessoa. Então, hoje os meus bens são uma câmera, um computador, uma mesa, um cachorro e um gato. Tudo bem, talvez não o cachorro e o gato, mas o resto são os meus bens.

E, quando você herda alguma coisa, isto significa que você recebe algo como herança, é algo que é transmitido de seus pais – ou tios, avós, ou alguém da sua família em geral – bom, é algo transmitido de seus pais para você, em geral quando os pais morrem. Uma pessoa que herda alguma coisa é um herdeiro. E Monteiro Lobato foi herdeiro de uma fazenda, chamada Fazenda Buquira.

Foi da Fazenda Buquira e da vida na fazenda que Monteiro Lobato provavelmente tirou a inspiração para o Sítio do Picapau Amarelo.

Mas como eu disse, Monteiro Lobato foi muito polêmico.

Lá por essa época que ele começou a morar na Fazenda Buquira, Monteiro Lobato teve muitos prejuízos. Ele teve muitos problemas com os caboclos que moravam na região.

Se você não souber o significado da palavra caboclo, posso te contar. Ela tem dois significados básicos.

O primeiro é qualquer pessoa que tem a pele com um tom de cobre, e o cobre é um tipo de metal como a cor entre marrom e vermelho. E no Brasil caboclo também são os filhos mestiços de índios com brancos, e a pele dessas pessoas tem o tom acobreado de que falei e essas pessoas normalmente têm os cabelos lisos.

A gente também pronuncia “caboco”.

Bom, e qual era o problema que os caboclos ocasionavam? Eles faziam queimadas, que é uma técnica primitiva de agricultura. As pessoas queimam os terrenos para limpar a área e começar uma plantação. E se você tiver acompanhado o noticiário sobre o Brasil, provavelmente deve ter visto alguma coisa sobre as queimadas que saem de controle na Amazônia.

E o problema que Monteiro Lobato tinha eram as queimadas que os caboclos faziam perto da fazenda. Ele ficava com tanta raiva, mas tanta raiva, que acabou se motivando a escrever um texto para o jornal o estado de São Paulo. Nesse texto, ele fez uma reclamação, uma crítica muito forte, e nessa crítica ele fez a caracterização, ou seja, a descrição de um caipira caboclo.

E melhor que eu dar a descrição nas minhas palavras é deixar o próprio Monteiro Lobato falar.

[…] Entre as raças […], uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. Feia e sorna, nada a põe de pé. […] Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!

Agora eu posso dar a minha explicação.

Primeiro, esse não é o trecho, ou seja, a passagem da carta original. Na verdade, esse fragmento foi retirado do conto “Urupês”.

Segundo, precisei selecionar partes. Não dava para falar tudo. Então, se você estiver lendo a transcrição desse episódio, vai ver umas indicações de quais trechos eu resolvi não incluir.

Agora podemos passar para a parte histórica.

Até aquele momento, a imagem dos indígenas na literatura nacional tinha sido positiva. Eu já falei no outro episódio sobre a “Iracema, a virgem dos lábios de mel”. Os escritores usavam o índio como parte da identidade nacional e era sempre uma coisa positiva. Então, quando o Monteiro Lobato descreve esse caboclo caipira como um homem preguiçoso, que está acomodado com a própria situação, que vegeta… isso foi um choque.

Além do quê, a palavra “jeca” é utilizada para falar de gente sem sofisticação, normalmente numa comparação entre as pessoas da cidade grande e as pessoas do interior.

E o caipira é alguém que mora no campo, na roça. Não é necessariamente um jeca. Mas, como Monteiro Lobato fez uma generalização do caipira caboclo que ele enfrentava para todos os caipiras do Brasil, isso foi muito polêmico.

Teve quem ficasse do lado do Monteiro Lobato. Rui Barbosa, de quem falei no episódio sobre Chiquinha Gonzaga, concordava com Monteiro Lobato. Mas teve também quem o atacasse, acusando o Monteiro de uma generalização inadequada.

Mas o fato é que Jeca Tatu ficou muito conhecido. Ele foi até mesmo utilizado como garoto-propaganda, que é o representante publicitário de uma marca ou causa, bem, ele foi o garoto-propaganda na conscientização para certas doenças. E quando eu era criança foi com as imagens dele o que aprendi a importância de andar calçado, com chinelos ou sapatos.

E o Jeca Tatu não ficou com aquela imagem estática. Ele foi evoluindo e passou a representar o brasileiro mesmo, sempre numa situação frágil. Monteiro Lobato até percebeu que o Jeca não era assim, ele estava assim. E a culpa não era dele. A culpa era do descaso das autoridades brasileiras com a população, algo que nunca deixou de ser verdade desde que esse país foi descoberto. A gente teve algum alívio em alguns governos, mas o descaso, ou seja, a falta de cuidado proposital, o desprezo, sempre esteve presente nos governos daqui, seja na época que Brasil era colônia de Portugal, seja depois que o Brasil virou uma República.

O bom mesmo das coisas que Monteiro Lobato escreveu é que ele usava uma linguagem muito acessível, seja nos livros infantis ou nos contos para adultos. Inclusive, foi essa linguagem acessível que popularizou o Sítio do Picapau Amarelo. É um conjunto de livros que não trata as crianças como idiotas. Ele conversava com as crianças, despertava nelas o senso crítico. e como dizem por aí a diferença entre o remédio e o veneno é só a intensidade, os livros infantis do Monteiro Lobato despertavam senso crítico demasiado.

Um dos livros, a “História do Mundo para Crianças”, conta a história, bem, o título é bem autoexplicativo, então o livro conta a história da mundo para crianças. A Dona Benta, que é a Vovó do Sítio do Picapau Amarelo, ela se reúne com as crianças e narra, ou seja, conta a história do mundo todo desde seu começo até as bombas de Hiroshima.

O primeiro grupo que pegou ar com o livro foi a Igreja Católica daquela época. Pegar ar com alguma coisa é uma expressão informal que significa ficar chateado com alguma coisa a ponto de se irritar. Então, a igreja católica daquela época se chateou com a publicação do livro “História do Mundo para Crianças” porque logo no começo o autor descreve que o mundo surgiu com o Big Bang, e depois Dona Benta faz uma descrição do evolucionismo. Os grupos religiosos consideram o livro péssimo para ser lido e em 1942 exemplares – em português não dizemos cópia de livro; dizemos exemplares, porque cópias são ilegais, é como quando você xeroca um livro – bom, em 1942 freiras fizeram fogueiras para destruir os exemplares do livro.

Outro grupo que não gostou nada nada do livro foi o governo brasileiro. No livro há um comentário sobre um episódio que aconteceu em 1931. Dois anos antes, em 1929, tinha acontecido a quebra da Bolsa de Nova Iorque que a gente conhece como Grande Recessão ou Grande Depressão. O preço do café, que era, foi e sempre vai ser importante no Brasil, bom, o preço despencou… ele caiu muito. Então, para aumentar o preço do café, o presidente da época, Getúlio Vargas, decidiu queimar café na época das festas juninas. Ele queimou tanto café, mas tanto café, que por quase dois meses o cheiro do café ficou no ar do litoral paulista. Os historiadores disseram que dava para dar café para o mundo todo durante três anos.

E na época que Monteiro publicou o “História Do Mundo”, o presidente ditador era o Getúlio. Então ele não ficou nada feliz com isso. E ainda havia também um comentário sobre a invenção do avião pelo brasileiro Santos Dumont. Ele dizia no livro que Santos Dumont não imaginava que o avião que voava seria usado como arma de guerra.

E o terceiro grupo que não gostou nada foi o governo português da época. O “História do Mundo para Crianças” foi proibido em Portugal e em todas as colônias portuguesas. E o episódio narrado por Monteiro Lobato foi quando os portugueses estavam em Calicute, na Índia que “eles descobriram” (e se você ainda não sabe, Goa, na Índia, também foi colônia portuguesa). Os portugueses foram atacados pela resistência indiana e como retaliação Vasco da Gama, o navegador, mandou que cortassem as orelhas, os narizes e as mãos de todos os tripulantes, e mandou os corpos num barco até a costa da cidade de Calicute para aterrorizar a população.

Claro que isso pegava muito mal para Portugal porque o Vasco da Gama é considerado um herói. Tanto que você nem acha menção desse episódio na maioria dos livros de história. Então, Monteiro Lobato mencionar isso num livro infantil foi horrível para Portugal.

Eu disse que o Monteiro Lobato foi polêmico. E nem tudo na obra dele era lá esse mar de rosas de que eu estou falando.

A contribuição dele para a sociedade brasileira foi muito grande para caber num só episódio do nosso podcast. Então, no próximo domingo nós vamos falar um pouco mais dele e de qual relação ele tem com o petróleo no Brasil e com a atual cultura do cancelamento.

Mas acredite em mim, tem muito mais polêmica na vida dele.

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