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A primeira coisa que você tem que saber para ouvir o episódio de hoje é que eu não sou psicólogo. Sou professor de português e quase tudo o que eu vou falar aqui foi embasado em pesquisas superficiais. Embasar algo em alguma coisa significa fundamentar, usar algo como base para outra coisa. Você pode embasar suas opiniões em fatos, por exemplo. E foi o que eu fiz no episódio de hoje. Eu embasei minhas opiniões em fatos. Mas isso não muda o fato de que eu sou um mero professor, um simples professor, nada mais.

E no episódio de hoje, nós vamos continuar um pouco o assunto da aula passada.

No episódio anterior, nós conversamos um pouco sobre as novelas brasileiras. Falamos sobre as razões de elas serem tão populares no Brasil e em mais de cem países. Hoje, nós vamos focar nos vilões das novelas – e os vilões são os bandidos, aquelas pessoas malvadas, que cometem crimes e que não têm escrúpulos.

E quando a gente fala em português que alguém não tem escrúpulos, isso quer dizer que alguém não hesita em agir, essa pessoa comete uma falta ou um crime e não se importa com isso. Ela vai agir para ter mais vantagem, mesmo que isso signifique que outra pessoa sofra.

Então, vamos lá falar das novelas.

Na maior parte do tempo, os brasileiros se lembram das novelas pelos vilões. Se você falar com um brasileiro de certa idade, e você disser o nome de Odete Roitman, é quase certo que esse brasileiro vai lembrar de quem é Odete Roitman e da frase “quem matou Odete Roitman”. Ela foi uma vilã muito popular de uma novela chamada Vale Tudo. Nós vamos conversar um pouco mais sobre ela mais tarde.

Já para os brasileiros mais jovens, ou mesmo para aqueles estrangeiros que utilizem bastante o Facebook e conheçam os memes brasileiros, a personagem Nazaré Tedesco foi marcante, isto é, ela teve destaque, ela ficou na memória das pessoas porque ela tinha muito destaque. Talvez você conheça essa personagem por causa do meme confused lady. Se você não conhecer, dê uma olhadinha no Google.

E a gente vai falar um pouco sobre a Nazaré Tedesco também depois.

Mas antes, eu quero discutir rapidamente o porquê de nós, brasileiros ou não, gostarmos tanto dos vilões.

Pessoalmente, sempre me identifiquei mais com os vilões das novelas. Eles são sempre mais interessantes do que os mocinhos. Os mocinhos são muito feijão com arroz. E quando a gente diz que algo é feijão com arroz no Brasil, significa que algo é muito básico, que não é divertido nem cativante nem interessante, porque brasileiros comem arroz e feijão todos os dias de todas as semanas de todos os meses de todos os anos. E se você ainda não souber disso, fale com um amigo ou uma amiga do Brasil. Pergunte o que ele ou ela almoçou ontem. Provavelmente tem feijão com arroz.

Mas como eu ia dizendo, os mocinhos são muito básicos, sempre seguem a mesma fórmula. Mas os vilões, não. Eles são mais coloridos, mais interessantes, e de acordo com a corrente psicanalítica da psicologia, eles são mais livres.

Isso acontece porque nossa mente a nossa psique é formada de 3 partes: o ID, o ego e o superego.

O ID é parte da nossa personalidade responsável pelos impulsos, aquela parte mais primitiva. É ela a responsável por aquela vontade de dar um tapa na cara de alguém de quem a gente não gosta.

O ego é a parte da nossa personalidade que surge, ou seja, que aparece quando a gente interage com a realidade ao nosso redor. Eu só quero chamar a atenção para esse verbo, surgir, porque ele é muito comum tanto na fala quanto na escrita e você vai poder utilizá-lo no lugar de aparecer. Mas nem sempre, tá?

Bom, falamos sobre o ID e o Ego, mas e quanto ao superego?

Ele é formado com os valores da sociedade em que vivemos. Esses valores reprimem certas ações que nosso ID quer fazer. É o superego que diz que é falta de educação dar um tapa na cara de quem a gente não gosta.

E a razão de a gente gostar dos vilões, o que é que ela tem a ver com tudo isso?

Bom, não é porque não possamos dar um tapa na cara de alguém que não queiramos dar um tapa na cara de alguém. No meu passado, na minha outra vida, eu trabalhava com algumas pessoas de quem eu não gostava. Eu não podia bater nelas, também não queria bater nelas. Mas eu ficava muito feliz quando uma delas se machucava, ou quando uma delas tinha um problema. Eu me sentia vingado.

E antes de continuar, quando a gente se sente vingado, a gente sente que alguém pagou por algo que fez contra a gente. Quando uma de minhas chefes levou uma queda da escada, eu fiquei feliz porque eu me lembrei de todos os gritos e todos os insultos que ela dizia não só para mim como também para todos os funcionários da empresa. Eu me senti vingado. Eu não podia me vingar diretamente, ou seja, eu não podia fazer ela pagar, mas eu podia ficar alegre quando ela se ferrou.

E se eu fosse você, não utilizaria essa palavra, se ferrar, com gente que eu não conheço. É um pouco como a expressão inglesa, e aqui eu peço desculpas, é um pouco como uma expressão “screw” em “screw you”. Por isso, é um pouco vulgar.

Ai caramba, como eu gosto de falar.

Voltando para a discussão, a gente gosta dos vilões porque eles são a total ausência, ou seja, a não presença, a inexistência dos limites do superego.

Então, se você assistir a série chamada Dexter, que tem um assassino psicopata no papel principal, talvez você simpatize com ele porque as pessoas que ele mata são tão ruins ou piores que ele. A gente tem um ditado aqui no Brasil que diz o seguinte: “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão.” Basicamente, isso diz que alguém que cometa um crime contra alguém que já cometeu o mesmo crime é na verdade um herói.

Maluco, não é?

E se você assistir a série Breaking Bad, e se tiver assistido mais de 5 episódios, provavelmente você torce pelo protagonista.

E torcer por alguém significa manifestar apoio por alguém. Você pode torcer para que a Maria consiga um novo emprego. Ou você pode torcer para que seu melhor amigo se recupere logo do acidente que sofreu. Torcer também significa desejar muito que algo aconteça. E agora mesmo eu estou torcendo que essa pandemia acabe e eu possa sair para caminhar tranquilamente.

Bom, agora que já apresentei a especulação sobre o porquê de gostarmos tanto dos vilões, vamos aos vilões: melhor, vamos falar das vilãs das novelas brasileiras.

A rede Globo, que é a emissora de que falamos na última conversa, essa emissora produziu muitas novelas boas. Pessoalmente, não vou muito com a cara das novelas mais recentes. Eu acho que elas perderam um pouco do charme das novelas antigas. Ou pode ser que eu esteja velho e rabugento. Rabugento significa mal humorado, uma pessoa que está sempre de mau humor é uma pessoa rabugenta, e cá entre nós é uma pessoa chata.

Como eu ia dizendo, a rede Globo produziu muitas novelas boas. E o mais interessante é que os vilões mais memoráveis são mulheres. Por que será? O que eu vou dizer agora é pura especulação, mas eu acho que é porque normalmente a gente espera que um homem cometa um crime. Inclusive, a discussão filosófica é se o homem com H maiúsculo é bom ou mau. então parece que a mulher não tem capacidade de ser má. Mas isso é só especulação, como eu disse. O que eu sei é que boa parte dos vilões mais memoráveis da rede Globo são mulheres. Na novela “Avenida Brasil”, uma das minhas favoritas a vilã se chamava Carminha. Ela era muito, muito malvada. E a mocinha tinha uma pegada assim mais Breaking Bad, de uma mocinha que fica malvada por um bom motivo.

Mas não é dela que vou falar hoje. A primeira de que vou falar é a Odete Roitman.

A novela Vale Tudo vale a pena. Se você tiver acesso, tente assistir. Se não tiver, vou dar um resumo rápido do que se trata o enredo.

A trama principal da novela é a oposição entre a mãe honesta, que se chama Rachel, minha filha inescrupulosa, que se chama Maria de Fátima. Só para você ter uma ideia, a Maria de Fátima vende a casa da família e foge para o Rio de Janeiro. A mãe dela vai atrás dela e aí a história toda começa. A certa altura da trama, a Maria de Fátima se envolve com Afonso Roitman, que é filho da Odete Roitman. Eu não vou contar toda a trama, para não estragar a surpresa. Mas a Odete Roitman era uma empresária rica. Ela manipulava a vida dos filhos, maltratava os empregados, inclusive ela se envolve num crime. Perto do final da história, alguém mata a Odete Roitman, mas ninguém sabe quem foi que matou.

Na época foi um bafafá. E um bafafá é uma discussão desorganizada, um tipo de confusão. Quando a gente diz que algo foi um bafafá significa que todo mundo falava sobre essa coisa. E todo mundo realmente falava sobre o assassino de Odete Roitman. Na televisão a gente via quem matou Odete Roitman. Para você ter uma ideia, essa questão ficou tão popular que até mesmo rifas, que é um tipo de loteria, até mesmo rifas foram feitas. Se você descobrisse quem tinha matado Odete Roitman podia até mesmo ganhar dinheiro!

 Ainda teve muitas propagandas, muitas propagandas interessantíssimas. Uma delas era de uma agência de seguros de vida. Do lado direito, estava a imagem de Odete Roitman sorrindo. Do lado esquerdo, tinha as seguintes frases: faça seguro. A gente nunca sabe o dia de amanhã. Eu não sei quantos seguros essa empresa vendeu, mas que foi uma estratégia interessante, foi sim.

A outra novela de que vou falar hoje é a Senhora do Destino. Essa novela passou quando eu era adolescente. Ela contava a história de Maria do Carmo, que era uma mulher pobre e que saiu de uma cidade no interior do Pernambuco para procurar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Ela chega na cidade no ano de 1968, no meio de uma confusão. E essa confusão foi causada pelo ato institucional número 5 do governo militar, da época da ditadura que a gente teve. No meio da confusão, ela conhece uma enfermeira, chamada Nazaré. Essa enfermeira tinha um amante e ela acreditava que se ela tivesse uma filha ou um filho, ela conseguiria casar-se com ele. Quando ela encontra a Maria do Carmo, que tem uma bebê chamada Lindalva, a Nazaré diz que pode cuidar da bebê enquanto Maria do Carmo procura ajuda para seu filho mais velho, que está ferido. Maria do Carmo cai na história de Nazaré, ou seja, ela acredita no que Nazaré fala, mesmo sendo mentira, e sai. Quando ela volta, ela não encontra a enfermeira. A enfermeira acabou de raptar sua filha.

Raptar, nesse caso, é um pouco diferente do comum. Normalmente quando uma pessoa é raptada os criminosos pedem dinheiro, é o que chamamos de resgate. Mas no caso de Nazaré, ela não queria nenhum resgate. Ela queria a bebê.

Então a Nazaré foge e a Maria do Carmo passa toda a vida procurando a filha raptada.

A história é bem mais complicada do que eu estou dizendo, mas a base é essa.

Depois de um tempo, a gente descobre que Nazaré não era enfermeira, mas sim prostituta. E ela não tinha nenhum escrúpulo mesmo. Ela mata o próprio marido derrubando-o da escada. Aliás, ela gostava mesmo de jogar as pessoas escada abaixo. Ela era politicamente incorreta, divertida, irônica, era uma personagem malvada de quem todo mundo gostava. A atriz que interpretou a Nazaré Tedesco é excelente, e ela se chama Renata Sorrah. Inclusive, numa das entrevistas que Renata Sorrah deu recentemente ela disse que todo mundo lembra dela por causa da personagem Nazaré e também porque Nazaré virou meme. É dela o rosto da mulher aparentemente confusa fazendo contas matemáticas.

Nazaré também é dona de algumas frases que caíram no gosto popular. Frases como “eu quero sair, eu quero bater perna” lembram dela imediatamente. É uma frase muito boa nesses tempos de quarentena.

Se você tiver um tempinho e acesso a essa novela, eu sugiro que você assista todos os episódios. A interpretação é de primeira, os personagens são de primeira, a história é de primeira. Tudo é de primeira. E quando a gente diz que algo é de primeira significa que algo é excelente, é da melhor qualidade.

A lista de vilões nas novelas brasileiras é bem longa. Não dá para falar de todas aqui. Eu escolhi essas duas porque elas marcaram época, ou seja, elas tiveram muito destaque. Mas se você começar a conversar com brasileiros sobre esse assunto, mesmo que eles não sejam noveleiros, com certeza eles vão ter muito o que falar.

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